Como disfarçar a loucura
Não tenho como não sentir uma profunda afinidade com Joana D'Arc.
Uma interpretação possível acerca dos antidepressivos é que eles substituíram a lobotomia. As pílulas não são tão agressivas quanto enfiar um picador de gelo dentro dos olhos para massagear o cérebro, óbvio, mas também facilitam a subalternidade à ordem vigente.
William Burroughs afirmou algo parecido décadas atrás, e de forma sucinta:
Um esquizofrênico paranoide é um cara que acabou de descobrir como as coisas funcionam.
As drogas psiquiátricas tentam consertar os afetados pela disfuncionalidade do mundo. Se for um tratamento eficaz, os torna dóceis, passivos e aptos ao trabalho.
Portanto, para disfarçar a loucura é preciso trabalhar, arregaçar as mangas, obedecer, se recompor e negar a realidade cruel em que somos submetidos. Os sofredores mentais podem de tudo desde que pelo menos produzam alguma coisa.
Senão, resta as ruas.
Durante o show do Conociendo Rusia, deu para pensar que ele é um gênio porque deixa evidente certas vulnerabilidades não só dele, mas também aquelas às quais o público se identifica.
E também porque é uma pessoa de certa forma bem sucedida, que usa a dor como matéria prima para arte.
Se fosse um doidinho falando no meio da rua as mesmíssimas coisas que o roqueiro argentino canta no palco ("no me cabe más nada en el pechooo"), ninguém daria bola.
A Cracolândia está cada dia mais cheia exatamente por isso. Nem todo mundo é artista, e não é todo mundo que consegue comercializar a dor.
O artista plástico Cícero Índio Badaross, que ficou conhecido como “Jean-Basquiat da Cracolândia”, por exemplo, vive até hoje nas ruas e até publicou um pedido de ajuda para comprar tinta e vender suas obras.
Vamos à fala de uma personagem charlatã de A Corneta, de Leonora Carrington:
Muitas vezes me sinto como Joana D’Arc, tão completamente incompreendida e com aqueles cardeais e bispos terríveis atazanando sua pobre e agonizante mente com perguntas desnecessárias. Não tenho como não sentir uma profunda afinidade com ela e volta e meia me sinto como se estivesse sendo queimada na fogueira só porque sou diferente de todos.
Os cardeais e os bispos são os psicólogos e os psiquiatras da contemporaneidade.
A essência das consultas sempre ronda em “pelo amor de Deus, doutor(a), me dê uma pílula pra continuar produzindo e suprimir meus sentimentos e percepções ruins e continuar na guerra". Qual a diferença disso e mandar mulher para um manicômio? Qual a diferença de queimar uma bruxa na fogueira? De dar choque nas têmporas das desobedientes? Qual a diferença do destino da Joana D'Arc?
Certamente há respostas para essas questões, mas não sei quais são.
O preço que eu pago para fingir que não sou doida me é muito mais alto do que abraçar a doidera e beleza.
Salvem os malucos.
Queimem os normais.
Ouvi de uma psicóloga que, num estudo conduzido pelo então orientador dela, fica constatada que a diferença entre os artistas realmente originais e os psicóticos internos em manicômios é que o os primeiros souberam dar vazão ao disruptivo que os habita.
Gosto da sua escrita e de Conociendo Rusia. Esse comentário sobre nem todos poderem comercializar a dor é algo bem perspicaz.