É preciso imaginar Sísifo no shape
A única loucura que cabe na minha vida é a minha.
Sempre me imagino realizando o harakiri, o suicídio moral dos samurais, toda vez que sou obrigada a ouvir uma longa história de alguém que não percebe os meus sinais de desinteresse (silêncio, concordâncias genéricas — “da hora”, “pode crer”, “top”, “nooossa”, “ahammmmm”, “rs” —, desvios de olhar).
Os samurais cortavam o próprio ventre da esquerda para a direita e arrancavam as tripas não por tristeza profunda, mas por questões de honra ligadas a família, sociedade e servidão.
Conforme “A morte pela espada: o suicídio ritualístico japonês analisado à luz da teoria de Émile Durkheim”, de Alana Gonçalves de Oliveira:
(…) O suicídio “não é visto como a negação do valor da vida, mas como uma afirmação do valor dado à devoção moral ao próximo” (YOUNG, 2002, p. 413). O suicídio é derivado de um senso de dever (giri) e, por esse motivo, está relacionado à integração do indivíduo ao meio social. Tais ações podem ser vistas nos samurais e nos kamikazes(…)
O meu sacrifício ficcional não tem nada de nobre. Ao contrário.
Seria mais uma performance para cessar o sofrimento de ouvir ladainha (histórias pessoais tediosas, lições de moral, palestras não solicitadas, problemas de homens barbados com a mãe, reclamação de autoritarismo do pai vinda de gente com 25 anos de contribuição ao INSS).
Penso também que me sentiria bem em traumatizar os falastrões. Injusto que só eu sofra enquanto despejam dores que pouco me importam na minha mente.
Antes, eu repousava na ideia de que é preciso imaginar Sísifo no shape…. Pensava que esforço de ser gentil, inclusive aos chatos, poderia me render um convite para a festa dos deuses, um pedacinho no céu.
Agora, numa fase mais cética, gosto de reforçar que não sou samurai, kamikaze ou figura mitológica. A partir de segunda-feira, quando algum monólogo no tom de cotadismo começar na minha frente, vou gritar que o chá que gosto não é o de groselha.
A única loucura que cabe na minha vida é a minha.
*Newsletter vegana. Nenhum animal, exceto eu mesma, foi machucado na produção deste artigo.
Como sempre, um dos melhores textos que eu queria ter lido e li 🙌
Me ganhou no primeiro parágrafo